O Que é a Ficção? — Tatuagem [mínimo romance], de Geruza Zelnys

Laura Redfern Navarro
3 min readMay 31, 2023

Romance híbrido da escritora, oficineira e esquizoanalista Geruza Zelnys, Tatuagem [mínimo romance] traz a fragmentação da linguagem como tessitura do corpo.

Partindo de um movimento de escuta entre um médico cirurgião, Dr. Oliver, e uma paciente sem nome, Tatuagem [mínimo romance] apresenta, já de pronto, uma tessitura limítrofe. A narradora, em seu relato, traz uma voz visceral, mas fragmentária, que abre à interpretação de se tratarem de duas pessoas, conectadas unicamente por uma tatuagem. E é a partir dessa ligação que insurgem as experiências, angústias e desejos da(s) personagen(s), compondo, desta forma, um elo com o próprio corpo:

“‘tu não te moves de ti’
não é coisa pra se tatuar nas costas

não é à toa que ela escreveu no papel e não na pele da garganta
[embora]

dependendo da posição não é fácil pra um cara comer uma mina
com um peso assim se impondo a cada investida
forte

mas tá lá e em letras caligráficas e anônimas
agora tenho que conviver
com isso de tirar a roupa e tal”
(p. 13)

Ao longo de Tatuagem [mínimo romance], Zelnys explora as bordas entre a experiência do corpo físico e a do corpo emocional, apresentando os fatos sobre o ponto de vista cru, pouco filtrado, da narradora fragmentada.

Colocando de forma muito clara os eixos da tatuagem e da sexualidade, a proposição inicialmente pouco coesa da obra vai tomando forma e, assim, aproximando o leitor do âmago da fragmentação da narradora, que parece estar em busca da própria voz, esta inicialmente espalhada — trabalhada por recursos os relatos de sonhos que entrecortam experiências “reais”, as referências aparentemente “jogadas”, a não-linearidade do texto e, até mesmo, a figura do médico, dr. Oliver — mas que vai tecendo um eixo de sentido:

“‘oliver me promete uma coisa’

‘o que benzinho?’

‘promete que não vai morrer
nunca’

‘eu não vou morrer benzinho’

‘por quê’

‘porque eu sou uma ficção’”

(p. 181)

Essa amarra brusca, que revela todo o processo de desnudamento da personagem como um ato ficcional, traz potentes questionamentos. Afinal, se dr. Oliver é uma criação fictícia, a quem ela se dirige ao longo de toda trama, que mais relembra uma conversa no divã? Seria uma alucinação? Um devaneio? Um sonho? Seríamos nós, os leitores, o cirurgião que ouve pacientemente o relato da mulher tatuada?

Nesse caso, Zelnys reforça que a experiência com a qual nos defrontamos na leitura não transborda para o campo do real, mas, ao mesmo tempo, crava que só será possível esta experiência por meio da figura do leitor, dentro de um processo dialógico.

Aqui, pouco se ouve a voz do cirurgião, mas ele é evidentemente colocado na posição de encarar e reconstruir o quebra-cabeças da fala limítrofe da narradora — função que, portanto, desde o início é atribuída a nós, leitores.

Além disso, apesar de ocupar, muito pelo relato, mais a função de um analista ou um psiquiatra, não deixa de ser conveniente a posição de dr. Oliver (ou o leitor) como um médico cirurgião. A partir de uma narrativa em que o corpo é destaque desde o início — principalmente pela menção frequente à tatuagem — são seus acontecimentos que ambientam Tatuagem [mínimo romance]. Desta forma, o leitor é colocado, de forma distanciada, ao exercício de dissecação e reparação deste corpo, que aparece fragmentário e ferido.

Ao mesmo tempo, observa-se que este diálogo entre o leitor e o fragmentário só é possível por meio do ato ficcional. Tanto a visceralidade quanto a não-linearidade do texto trazem um exercício de exploração e reconhecimento da própria voz. A narradora, que mantém um texto fragmentário, brinca com o texto, com a disposição das palavras, faz referências à bandas como Joy Division, tudo isto numa tessitura muito processual, como ela revela no capítulo 142:

“alguma coisa nessa história
já não tá fazendo
o menor sentido
pra mim

e é justamente isso que dá
todo sentido
a todo resto

‘é…
saquei’”
(p. 185)

Portanto, enquanto dr. Oliver (ou o leitor) tem a função de reparar o corpo da personagem, ela mesma traça este movimento a partir do registro do corpo, que vai ganhando consciência a partir da tessitura textual. Assim, texto e corpo não se separam, ou, ainda, a instância ficcional é a única possibilidade de recriar um corpo.

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Laura Redfern Navarro

2000. Aquariana, poeta e jornalista. Escrevo sobre livros, mulheres e escrita criativa. Sou autora de "O Corpo de Laura" (2023), projeto vencedor do ProAC 2022.