o eu enquanto estranheza — Juventude, de Laís Araruna de Aquino
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Vencedor do Prêmio Maraã de Poesia 2017, Juventude é o livro de estreia da poeta recifense Laís Araruna de Aquino, tendo sido publicado pela editora Reformatório. São poemas que desafiam a construção de um sujeito a partir de um estranhamento do mundo, que abrange espaços diversos, incluindo-se aí a vida doméstica, a família e a relação com a cidade.
Na orelha do livro, a autora conta que “Se fosse possível eleger um tema para este livro, seria a expressão e exposição do eu que escreve: suas vivências e sentimentos (…)”. Assim, a elaboração desse sujeito pende em imagens que se encontram num limiar em que o universal e o afetivo se encontram. Isso pode ser visto no poema Lições de Família (p. 57):
“I — PRÓLOGO
O avô que não conheci foi militar da aeronáutica, radioamador, proprietário de gado e terras. Na partida de sua última viagem, encontrou meu pai no elevador e lhe disse que voltaria breve. Foi a última pessoa com quem falou antes de se meter só num vasto pedaço de terra, distante de tudo, onde morreu d’um infarto. Pediu ajuda pelo rádio em vão. A família foi ao Piauí buscar o corpo.
II
Imagino meu avô no portão de entrada da fazenda
sob um sol superlativo e penetrante
o olhar invadido pelo desmesurado de terra sem gente
e o seu peito fenecendo no ar indiferente da natureza
Só o homem pode, em sua liberdade, morrer
envolvido pela beleza
Em todo instante, guarda a vastidão do desconhecido
a sua centelha leve e imorredoura
(somos nós o que se vão)
Por isto, mira, vê, repara
demora um momento ainda nesta travessia
que é toda a tua vida”
Percebe-se, neste poema, uma transição entre o espaço da intimidade, isto é, a história do avô morto, e o da reflexão — esta mais abrangente, impessoal, quase filosófica (“Só o homem pode, em sua liberdade, morrer / envolvido pela beleza”).
Além disso, há uma construção poética que carrega uma certa estranheza, por exemplo, ao relatar a história da morte do avô em tom objetivo, como se houvesse um distanciamento afetivo por parte do eu-lírico. As informações, ainda que factuais, dão a impressão de um branco, como se algo estivesse sendo omitido entre uma frase e outra:
“(…) Na partida de sua última viagem, encontrou meu pai no elevador e lhe disse que voltaria breve. Foi a última pessoa com quem falou antes de se meter só num vasto pedaço de terra, distante de tudo, onde morreu d’um infarto.”
O estranhamento na poesia da Laís Araruna de Aquino também pode ser demarcado justamente pelo uso invertido deste recurso: o de criar um espaço subjetivo envolvendo figuras com quem o eu-lírico tem um distanciamento claro. Isso fica evidente no poema Uma província, o eu (p. 69):
“conta-se que em Köninsberg todos os dias
Kant caminhava às cinco da tarde
para que viagens voltas ao mundo travessias périplos
⠀⠀⠀⠀⠀cabotagens
se o que vejo é o eu”
Aqui, o personagem é o filósofo Immanuel Kant (1724–1804), conhecido por suas contribuições à epistemologia, sendo uma das principais figuras da filosofia na era Moderna. O que se sobressai, pensando a elaboração do texto, é a maneira afetiva como se aproxima de Immanuel Kant, imaginando o mesmo num momento de descontração e de intimidade. E essa descontração traz uma reflexão acerca da própria existência — a de estarmos condenados a ela — que poderia, inclusive, ser uma elaboração própria do eu-lírico. Assim, há uma transferência ao impessoal, mantendo seus estranhamentos.
Logo, o eu-lírico que se constrói em Juventude é um eu-lírico que opera nas incoerências e que se usa delas para refletir a sua própria condição enquanto ser. Essa reflexão pode ser condensada, também, a partir do corpo sensorial — ou da interação com a matéria externa. Isso se vê no poema Momento no Recife (p. 73):
“quem sai da ilha de Santo Antônio
pela ponte Duarte Coelho, ao fim da tarde,
maré baixa no Capibaribe,
sente o cheiro salgado, úmido e fluvial
de terra molhada misturada a dejetos
e peixe, ao fazer a travessia;
o vento vem do mar,
e o sol deita entre os casarios
da rua da Aurora, encimado pelas nuvens negras
e douradas de um resto de dia, enquanto o ar
fresco curte a pele.
em uma jornada como esta,
meu corpo alheado em abstrações de agosto
tornava ensimesmado para casa
eu estava só e fatigava a conta dos dias
quanto então o cheiro acre no ar
do leito e da terra do rio,
iluminado pelo brilho esvaído do sol,
devolveu-me a espessura da vida
e sua medida de água, sal
e corrupção
e eu a traguei — profundamente
para impregnar o corpo
com o momento precário da beleza”
Percebe-se, assim, que o “eu” de Laís Araruna de Aquino é uma impregnação — mesmo externalizado ou projetado, ele continua sendo a elaboração da realidade. Portanto, ainda que seja reflexão, o sujeito também se funde enquanto objeto da mesma. E é nessa fricção que há a poesia de Juventude.