o cotidiano sob as lentes da investigação de um crime — eu investigo qualquer coisa sem registro, de Thaís Campolina

Laura Redfern Navarro
4 min readMay 25, 2022

Contemplado pelo concurso Poesia InCrível de 2021, eu investigo qualquer coisa sem registro é a estreia na poesia da escritora divinopolitana Thaís Campolina, tendo sido publicado pela Crivo Editorial. Partindo da proposta de investigação criminal, o livro apresenta um olhar voltado para o estranhamento dentro do cotidiano, separando os poemas em quatro seções: Cenário, Testemunhas, Autoria e Tempo & Ação.

Na primeira seção, Cenário, a poesia revela um caráter descritivo, que busca trazer o ambiente como eixo central na construção do texto, sem, contudo, se limitar a ele. Isso se evidencia no poema inventário cidade nova (p. 15):

cinco marcas de ração coleiras brinquedos pipicat caixas de areia casinhas de cachorro peixes realistas com catnip dentro sachês e patês para pets linhas para costura agulhas alguma lã post-its canetas lápis de cor giz de cera canetinhas vários tipos de papel pincéis kit aquarela tinta guache cola tesoura sem ponta cartolina caderno pastinhas coloridas pastas sanfonadas ecobags agenda planner papel de presente porta-retrato squeeze enfeites de biscuit plantas de plástico canecas variadas dominó baralho jogo das varetas uno pilhas serviço de xerox impressão e scanner. quantas histórias mais guarda uma lojinha de bairro?”

Neste poema, percebe-se uma descrição em lista que encontra espaço num texto em prosa, trazendo uma quebra no fôlego da leitura. Essa descrição é, também, ela própria, construída a partir de quebras: primeiro, imagina-se que se trata de um pet-shop, depois, de uma papelaria e, por fim, das bugigangas vendidas no caixa de um mercado.

Podemos entender que se trata, assim, de um percurso por uma loja que vende de tudo. Partindo desse ponto, é possível denotar que a lista, apesar de substanciosa, diz mais sobre o eu-lírico do que à loja em si, revelando seus interesses: o dos cuidados com os animais domésticos e o da papelaria.

Porém, este eu-lírico se coloca num olhar voltado para o externo, perguntando-se “quantas histórias mais guarda uma lojinha de bairro?”. Logo, compreende-se que se trata de uma rixa entre uma subjetividade que vai se construindo pelo universo exterior, que vai ganhando um sentido para além do que é possível denotar. Assim, o eu-lírico torna-se consciente do ambiente, estando encarregado não apenas de listá-lo, mas de construir um significado para ele.

Essa construção de significados a partir de elementos externos se torna mais potente na segunda seção do livro, Testemunhas, em que ganha protagonismo não o ambiente, mas os corpos que convivem com o eu-lírico, sejam pessoas, casos de noticiário ou, até mesmo, animais. Nesse sentido, a subjetividade permanece omitida, mas ainda se revela enquanto a pessoa que narra. Isso se vê no poema GPS canino (p. 26)

“toda cidade
dessas pequenas
tem um cão que sabe onde ir
todo santo dia
ele investiga
a terra as pessoas os odores
em quem se pode confiar
quem vai cozinhar
quem sabe compartilhar”

Neste poema, ainda que haja uma construção factual, a fabulação se faz presente ao denotar aspectos subjetivos do cachorro, associando a sua investigação ao cheiro à quem se pode confiar, quem se pode ser amigo e quem lhe pode oferecer comida. Assim, constrói-se uma tensão entre a leitura do cotidiano e os atravessamentos ficcionais e subjetivos.

Na seção Autoria, esses atravessamentos ficam mais potentes ao tratarem do próprio eu-lírico, agora elemento central de sua poética. Podemos ver isso nitidamente no poema meu corpo tem (p. 51):

“boa elasticidade
pouca altura
órgãos células pelos
um par de óculos para longe
dois furos para pendurar brincos
limites
e todo um histórico de
unhas e unhadas
marcas e feridas
dentes e mordidas
bruxismo
rinite alérgica
ansiedade
pressão nos trinques
colesterol elogiado pelos médicos
e ainda um apêndice

até quando?”

Este poema traz uma espécie de autópsia: elenca elementos factuais do corpo do eu-lírico, como o uso de óculos, o colesterol elogiado pelos médicos e o apêndice ainda existente. Entretanto, com a quebra final, ele evidencia a impermanência deste corpo, mas mantém o tom objetivo.

Pensando o livro enquanto uma investigação de um crime, a seção Autoria evoca o agente da “infração”: o eu-lírico, que se debruça ao cotidiano para fazer sua escrita, se colocando a partir de personagens terceiros — seja o ambiente de uma loja, um cachorro ou uma amiga. Nessa seção, quebra-se esse pacto, ainda que este eu-lírico observe a si mesmo de maneira distanciada, como neste último poema.

Por fim, a investigação também se volta para outros elementos, como o Tempo & Ação. Nesta seção, a poesia de Thaís apresenta uma primeira pessoa com mais força, que comenta e movimenta acontecimentos. A seção traz poemas que dialogam com as questões dos nossos tempos, como a crueldade animal, a ascensão do fascismo e os direitos das mulheres. Isso se vê no poema plot twist (p. 59):

“entro
fugida
na cozinha
do restaurante que cheira a bacon

estou cercada
de cozinheiras
que empunham facas
e sabem usá-las

sabia que furar a pele de um porco é como furar a nossa?”

Por fim, podemos consolidar o livro eu investigo qualquer coisa sem registro como uma construção de uma poética, e, mais do que isso, de um eu-lírico — este que aparece retorcido, como alguém pego na cena do crime. Uma leitura divertida, curta, mas cativante e bem humorada.

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Laura Redfern Navarro

2000. Aquariana, poeta e jornalista. Escrevo sobre livros, mulheres e escrita criativa. Sou autora de "O Corpo de Laura" (2023), projeto vencedor do ProAC 2022.