manifesto pelo mundano- A Proclamação da Vulgaridade ou quantos furos uma calcinha pode ter?, de mila teixeira

Laura Redfern Navarro
4 min readApr 13, 2022

Entre o nojo e o erótico, o limite é vago — embora as possibilidades sejam muitas. É nessa concepção que a poeta e cartomante mila teixeira constrói seu livro de estréia, “A Proclamação da Vulgaridade ou quantos furos uma calcinha pode ter?”, publicado em 2021 pela editora Urutau. A partir de poemas que debruçam sobre temas como alergias, processos fisiológicos e até mesmo o desejo sexual, trata-se de uma elaboração perspicaz, recheada de humor e acidez.

No prefácio do livro, “eu te gosto feio”, Caio Riscado coloca a proposta do título enquanto chave, discorrendo, assim, sobre ambos os conceitos: proclamação e vulgaridade. Afinal, o que se sugere é quase um paradoxo: a afirmação pública em cima do que é considerado de “mau gosto”. E esta é a proposição ética que guia a poética do livro, que Riscado associa à ideia de “crueldade” como postulada pelo poeta Antonin Artaud “na medida em que estabelece pontos de atravessamento em todas as viventes e sugere aquilo que, mesmo contra a nossa vontade, é parte fundante da vida” (p. 10). Assim, em seus poemas, mila assume com orgulho o próprio corpo em todas as suas manchas, cicatrizes, fricções — naquilo que convenciona-se como “nojinho”.

Isso pode ser observado, de cara, em uma das epígrafes que abrem o livro, do artista plástico Nuno Ramos: “Meu corpo se parece muito comigo, embora eu o estranhe às vezes”. Aqui, essa motivação do estranhamento torna-se reapropriação e, até mesmo, manifestação de um desejo. O poema “vontades” (p.23) nos evoca essa complexidade:

“quase certeza: meus vizinhos do apartamento em frente
me veem pelada de vez em quando
me incomoda que vejam meu corpo nu sem que eu saiba
não não vou parar de andar pelada pela sala
eu gosto de andar pela sala e detesto cortinas
elas são caríssimas
custam uns dez porcento do meu salário líquido”

No poema, percebe-se a a posição conflitante do eu-lírico, que, ao mesmo tempo em que se mostra desconfortável com a própria exposição, aprecia da intimidade que experiencia, mostrando uma negativa em relação à preservação. Essa negativa é construída a partir de uma ironia: “eu gosto de andar pela sala e detesto cortinas / elas são caríssimas / custam uns dez porcento do meu salário líquido”, o que revela a resolução do conflito através da auto-afirmação corpórea, num orgulho sutil, disfarçado pela “desculpa” do preço e do incômodo das cortinas.

A construção da corporeidade afirmativa de mila teixeira também empresta muito da intertextualidade, estabelecendo diálogo com diversos autores, artistas e figuras públicas tanto do reduto mais intelectual quanto do popular. Percebe-se que um dos aspectos que dão força à poesia de mila é a construção desses diálogos a partir de uma linguagem que se funda no cotidiano, no mundano, no vulgar, principalmente. O poema “sonhos ilustres (por ordem de aparição)” (p. 42) é um bom exemplo:

“virginia woolf me chamando
darling, você quer água de coco ou suco da fruta?
na praia vermelha era melhor
quando tinha horário de verão

frank o’hara querendo me
levar ao museu
a garçonete do café se desculpou pelo ar quebrado
quando notou meu suor

adília lopes me fazendo
reler seu livro
disse pra que não esquecesse de fazer meus exames de sangue e
que seguisse a recomendação médica de tomar mais sol

julio cortázar me pedindo
não se esquece de comprar o leite do gato, cariño
apagou o cigarro sem querer
na minha saia recém-comprada”

Este poema, ao elencar o corpo do eu-lírico sempre como o agente ativo no diálogo com quatro grande escritores a partir do empréstimo de elementos próprios de suas poéticas, mila consegue estabelecer uma transposição limítrofe entre o universo intelectual e o subjetivo a partir da exposição de uma atmosfera cotidiana. As referências, no poema, estão sempre amparadas numa vergonha desnuda, evidenciadas pelo suor, pelos exames e pela saia, trazendo seus personagens para perto do leitor — uma espécie de reverência ao “gente como a gente”.

O poema que fecha o livro, “quantos furos uma calcinha pode ter?” (p. 61) torna essa máxima mais evidente, numa espécie de manifesto:

“para colocar fogo nas suas calcinhas você vai
precisar de (por ordem de importância):
suas calcinhas
um recipiente que não derreta em contato com o fogo
fósforo
álcool
estar em um espaço aberto
água caso dê algum xabu (queremos apenas calcinhas destruídas)
força de vontade porque
provavelmente vão te questionar
meu deus por que você tá colocando fogo nas suas calcinhas?
sugiro a seguinte resposta
dada a forma suave como esperam
é que as suas estão muito velhas com muitos furos estão manchadas de uso
são muitos os fluidos que passaram por elas não se preocupe pretendo
comprar calcinhas novas muito em breve te aviso”

Pensando a interlocução com a crueldade artaudiana proposta por Caio Riscado no prefácio, o poema consegue abranger em complexidade aspectos eróticos e escatológicos que constituem a corporeidade humana, sendo, assim, um ode à vulgaridade, ao “nojinho” — ao que nos torna mundanos, desejantes e, assim, viventes.

Por fim, “A Proclamação da Vulgaridade: ou quantos furos uma calcinha pode ter?” é uma experiência de leitura que faz da poesia um retrato do desejo, partindo, principalmente, do profano. Trata-se de uma erudição que se vê subvertida, de um eu-lírico se encontra em bailes funk, que tira meleca do nariz e rói as unhas. Um convite, mas também uma provocação.

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Laura Redfern Navarro

2000. Aquariana, poeta e jornalista. Escrevo sobre livros, mulheres e escrita criativa. Sou autora de "O Corpo de Laura" (2023), projeto vencedor do ProAC 2022.