Linguagem, Desejo & Mitologia — Ossatura Sutil, de Mariana Artigas

Laura Redfern Navarro
5 min readSep 28, 2022

Publicado pela Editora Urutau em 2022, Ossatura Sutil é o primeiro livro da poeta, professora e atriz curitibana Mariana Artigas, cujo fio se coloca na multiplicidade do feminino, que se apresenta numa textualidade delicada, mas densa. O livro se destaca pela sua incursão no que tange à apropriação de elementos arquetípicos, oníricos e dispositivos corpóreos.

Nesse encaminhamento, os poemas de Artigas estão divididos em seis seções, nomeadas a partir de conceitos e imaginários particulares — como “átrios”, “braço de mar”, “mitologia”, “ossatura sutil”, “desejo” e “linguagem” — intimamente ligados à construção do feminino e sua afetividade. Isso se vê explícito logo na primeira seção, no poema “solitude” (p. 10–11):

“logo pela manhãzinha
levanto e o corpo pesa
pés trepidam,
mãos oscilam.

cigarro entre os dedos
de quem havia parado
de fumar

o aroma do café
invadindo o espaço,
caminhando ainda
de mansinho

um olhar caótico
espreita o medo
do caos ao nirvana

há um ranger de ferros
abro os olhos,
não necessariamente
acordo.

bocas vorazes
interpelam
silêncios vazios,
imersos em corpos ébrios.”

Neste poema, percebe-se uma escrita corpórea e introspectiva do eu-lírico em um momento a sós, elaborada num movimento que se assemelha ao enxergar-se no espelho.

Em “solitude”, primeira e terceira pessoa intercalam — a primeira estrofe, por exemplo, reforça o eu-lírico tanto pelo uso do verbo (“levanto”) quanto pela construção sintática, que evoca um tom mais informal (“logo pela manhãzinha”), em contraste com o restante do poema, que se mantém descritivo (“cigarro entre os dedos / de quem havia parado / de fumar”).

Este aspecto elenca uma maior objetividade no poema, que causa a impressão de um maior distanciamento entre o eu-lírico e as descrições colocadas no texto. Entretanto, percebe-se que essa “distância” é colocada de maneira frágil, sendo quebrada nos versos “não necessariamente / acordo”, que retoma a menção à primeira pessoa.

A partir daí, na leitura, fica claro que os objetos narrados são afetivos e subjetivos, indicando fragmentos do inconsciente do eu-lírico no momento em que ele acaba de acordar, ainda não separando-se totalmente do mundo onírico ou interno. Nas descrições, as mãos que oscilam, o olhar caótico e as bocas vorazes sugerem melancolia, luto e desejo em torno do sonho que escapa, intercalando com imagens de cigarro, aroma de café e ranger de ferros, estas referenciando o mundo prático, que põe à queda o movimento onírico.

Logo, “solitude” constrói uma interação que se encontra nas duas instâncias no eu-lírico, expressando suas contradições — o que se encaixa na proposta de “multiplicidade do feminino” colocada por Artigas como eixo central de Ossatura Sutil — e também apresentando-o como figura “medial”, isto é, aquela que se encontra entre o inconsciente e o real.

Essa conceptualização é importante ao precisamente evocar um rico arcabouço mitológico e arquetípico em relação ao feminino, evocando figuras como a deusa grega Perséfone¹. Na segunda seção do livro, “braço de mar”, Artigas investiga esse simbolismo de “por entre” a partir de uma posição mais desejante do eu-lírico:

“precipício

uma poeta atira-se ao mar
para vivenciar seus segredos”
(p. 27)

Neste poema, que traz uma imagem poderosa a partir de uma escrita concisa, há uma tensão que se coloca entre vida e morte — essa já explicitada no título, “precipício”, mas que ganha contorno ao longo do texto. A poeta se atira ao mar — aludindo a um ato suicida, hipótese que se sustenta no segundo verso, que traz suas intenções (“para vivenciar seus segredos”).

Aqui, portanto, a “morte” é colocada como uma ação, esta que parte do desejo do eu-lírico, se apresentando a partir de um desejo (“para vivenciar seus segredos”). Logo, o suicídio, aqui, não aparece como último recurso ou desespero, mas uma decisão final, partindo, portanto, de uma pulsão de vida, esta que é demarcada fortemente pela linguagem, levando-se em consideração a personagem ser caracterizada como “poeta”.

Assim, fica claro em “precipício” um paradoxo colocado pela atriz Maria Giulia Pinheiro no prefácio de Corpocaído (Selo doBurro, 2022), “a única violência permitida a uma mulher é a autodestruição”. Tomando-se o arquétipo em torno da violência enquanto ação, isto é, movimento, percebe-se, em relação ao poema “solitude”, uma colocação mais demarcada e ativa da figura feminina, que não se coloca somente de forma contemplativa, mas enquanto agente.

Logo, o arquétipo “medial” que se coloca na poesia de Artigas nesta segunda seção apresenta um contorno que sugere o controle da interlocução entre as duas instâncias — a inconsciente e a realista, que, aqui, se apresenta enquanto vida e morte. Na terceira seção de poemas, “mitologia”, esse controle insurge a partir do corpóreo, como no poema “Lua de Artemísia” (p. 38):

“vou adentrando o oceano cósmico
e sou atravessada por uma canção
sem voz, repleta de vazios.
sinto o vento e o silêncio
escorrendo pelos meus poros
amor, estou repleta de veneno
um veneno abrupto, amor
um sonho nebuloso
um controle absurdo
equilibro-me entre a flutuação,
entre o abismo e o etéreo,
meu bem, olha-me com cuidado,
sou pitonisa, nascida em delfos,
o codinome da sacerdotisa.”

Neste poema, há novamente uma descrição introspectiva do eu-lírico, mas direcionada ao outro, num movimento que relembra um monólogo. Isso se vê pelo tom desejante do poema

(“amor, estou repleta de veneno”) que combina imagens do erótico com um universo mitológico, evocando figuras como a deusa grega Ártemis, a sacerdotista Pitonisa e a cidade de Delfos.

Ao longo de “Lua de Artemísia”, portanto, o texto traz um erotismo intenso e passional, que se consolida a partir de uma linguagem do místico, a qual não só capta a potencialidade do desejo, mas também suas contradições (como nos versos “um sonho nebuloso / um controle absurdo”).

Aqui, portanto, a incursão do arquétipo “medial” surge a partir do contato com o inconsciente, com o mágico e com o místico a partir do desejo e da sexualidade. Percebe-se, por exemplo, que a força do eu-lírico não é tão voltada ao seu objeto de desejo, mas, sim, à maneira como ele constrói o próprio desejo.

Ou seja, Ossatura Sutil traça uma escrita que se molda, especificamente, na construção de um eu-lírico feminino potente, mas sem deixar de lado o arrebatamento. Na quarta, quinta e sexta seção, isso se mostra pelos poemas curtos e concisos, que trazem essa noção por meio da investigação de ausência e do luto (em “ossatura sutil”), da afetividade e da esfera relacional (“desejo”) e da palavra (“linguagem”). Essa pesquisa empreendida ao longo do livro aparece, em toda sua potência, no poema “euforia” (p. 59):

“em cinco ou seis versos, a atriz nasce
da tua escrita, meu amor, petite-mort — cena divina”

Aqui, a “mulher medial” que integra a poesia de Artigas se vê em processo — este que consiste em contradições, como desejo e a morte, identidade e silêncio, e, até mesmo, na interlocução entre as linguagens do teatro e da poesia (“em cinco ou seis versos, a atriz nasce”). Ossatura Sutil, assim, explora a linguagem a partir de um compêndio arquetípico. Como afirma a historiadora Beatriz Rocha na orelha, “Sua mitologia é da ordem do onírico, da ordem do voluptuoso”.

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Laura Redfern Navarro

2000. Aquariana, poeta e jornalista. Escrevo sobre livros, mulheres e escrita criativa. Sou autora de "O Corpo de Laura" (2023), projeto vencedor do ProAC 2022.