entre memória e sonho, há a narrativa — Ao Pó, de Morgana Kretzmann

Laura Redfern Navarro
3 min readMar 30, 2022

Vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2021, Ao Pó é o romance de estreia da gaúcha Morgana Kretzmann, tendo sido publicado pela editora Patuá. A narrativa, que se constrói na fricção entre sonho, memória e presente, é conduzida por Sofia, uma garota adolescente do interior do Rio Grande do Sul que precisa lidar com um pesado fardo: ter testemunhado um abuso contra sua irmã mais nova, Aline, por seu tio Luiz, também seu agressor na infância.

Construído a partir de capítulos que demarcam datas — 1999, 2006, 2014 — entrecortados por breves narrativas onde sonho e memória se confundem, o romance trata de temáticas como abandono, trauma, relações abusivas e conflitos familiares, partindo sempre do pressuposto do recomeço.

Assim, acompanhamos a mudança de Sofia para o Rio de Janeiro a fim de persuadir a carreira de atriz, como uma forma de se desatar de seu passado. Entretanto, o jeito de ser e estar no mundo de Sofia permanece intimamente carregado por suas feridas, seus vazios e suas memórias. Temos, aqui, então, uma personagem estilhaçada, mas profundamente humana; talentosa, mas imatura; independente, mas carente. Em sua resenha para o livro, o escritor Andreas Chamorro é cirúrgico: “Há uma passagem em O Avesso da Pele onde Pedro afirma existir dois tipos de pessoas: a egoísta e a doadora. Porém, e quando essa dicotomia se funde numa só pessoa? Eis a protagonista e narradora de Ao Pó, Sofia.”

Projeto gráfico do livro (arquivo pessoal)

Apesar de entendermos desde o início da história o ponto nevrálgico que define a existência de Sofia, podemos denotar que Ao Pó também traz a formação dessa personagem, trazendo episódios, dúvidas e movimentos típicos da adolescência e da entrada na idade adulta, como o primeiro namoro, a descoberta da sexualidade e a insegurança profissional.

Entretanto, sua angústia tão constitutiva está sempre ali, como se estivesse pendurada por entre os capítulos que separam os acontecimentos do onírico. Uma vida marcada por acontecimentos em aberto até a experiência de um novo trauma, profundo e violento, que a leva novamente a questionar seu passado. Daí, o retorno — e uma revelação — que revertem uma narrativa factual à uma elaboração ainda mais subjetiva, como se misturasse a escrita onírica à objetiva.

Por fim, Ao Pó se encerra com um poema, cujo título é o mesmo do livro. Nele, podemos entender a fricção testemunhal que atravessa o livro:

Ao Pó

A verdade não canta para os adormecidos
Até quando fugimos
Buscando — escondendo — gorjeando
No Silêncio Nosso
Vozes
Este sonho que se expõe

A poeira vermelha que levanta
Nuvem que acoberta
Colcha-enfeite do poema sujo
Nos encontra fraturadas
Vistas que se fecham
Medo que não dorme

Olhos inundados
Borrados ao despertar
Antes represadas
Agora perpetuadas
Misturadas

Ao pó”

Em suma, Morgana elabora uma narrativa de conversa e desconversa, onde há um arcabouço inconsciente na consciência de Sofia, mas sensibilidade — na tessitura de seus sonhos. Um romance multifacetado, em que equilibra-se leveza e seriedade numa eterna interrupção. Uma interrupção que constrói, destrói e se reconstrói Sofia.

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Laura Redfern Navarro

2000. Aquariana, poeta e jornalista. Escrevo sobre livros, mulheres e escrita criativa. Sou autora de "O Corpo de Laura" (2023), projeto vencedor do ProAC 2022.