entre acidente e encontro, a fronteira — Escute as Feras, de Nastassja Martin

Laura Redfern Navarro
3 min readApr 20, 2022

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Publicado pela Editora 34, Escute as Feras é um relato-diário-etnografia escrito pela antropóloga Nastassja Martin, com tradução de Camila Vargas Boldrini e Daniel Luhmann. O livro é uma revisita da própria Nastassja às experiências que viveu durante uma pesquisa de campo realizada na Península de Kamtchátka, na Sibéria. Trata-se, assim, de um trabalho de não-ficção, em que se finca a fronteira entre a autobiografia e a pesquisa científica.

Ao longo de Escute as Feras, um evento se sobressai enquanto central: o encontro de Nastassja com um urso que a ataca, desfigurando seu rosto. A partir daí, há a desestruturação psíquica da antropóloga, que passa a refletir sobre as diferenças entre natureza e cultura, buscando ressignificar o acidente. Para ela, o ataque do urso foi um encontro.

“Entro num estado de estupor diante dessa Chapeuzinho Vermelho que leva meu nome, perseguida por esse urso apaixonado que não pode mais lhe falar; urso que ela também persegue sem saber, sem saber que aquele que ela ama já trocou de pele. Eles estão condenados a viver em mundos diferentes, não se entendem mais. As duas almas, ou aquilo que lhes vai por dentro, estão, a partir de agora, presas em uma pele alter que não responde mais às mesmas expressões de existência. Penso na minha história. No meu nome even, mátukha (ursa) (…)”
p.16

Essa noção de encontro é o que vai nortear toda a escrita do livro, que Nastassja busca embasar partindo, por exemplo, das representações culturais do urso dentro da comunidade que está pesquisando, os evens (“Penso na minha história. No meu nome even, mátukha (ursa) (…)”). Nesse movimento, a antropóloga passa a compreender a sua trajetória enquanto limiar, ou fronteiriça. Afinal, o trabalho científico passa a se misturar ao eu-subjetivo, ou o eu-subjetivo passa a atravessar a pesquisa, seja pela sua limitação, seja pelo seu significado:

“Se o urso é um reflexo de mim mesma, que expressão simbólica dessa figura estou explorando com mais frequência? Se não tivesse acontecido seu olhar amarelo no meu olhar azul, talvez eu pudesse me satisfazer com essas correspondências. Ainda que preferisse o termo ressonância. Mas aconteceu o entrelaçar dos nossos corpos, aconteceu esse incompreensível nós, esse nós que, de maneira confusa, sinto vir de longe, de um antes bem aquém de nossa existência limitada. Fico revirando essas perguntas na minha cabeça. Por que nós escolhemos? O que realmente tenho em comum com a fera e desde quando?”
p. 59

Nesse sentido, também se diluem os limites entre Nastassja e os even, que passam a ter uma participação mais pessoal e intensa em sua vida. Logo, Escute as Feras também revela as interfaces, senão os limites, do ofício antropológico, elencando uma escrita que rompe essas barreiras, expondo as vulnerabilidades, incômodos e alegrias de Nastassja na Sibéria, que cria relações de afeto e confiança com alguns dos habitantes.

Há uma preposição, assim, em desmanchar a compartimentação entre o trabalho de campo e o diário pessoal, pensando-se uma nova metodologia, que consiga dar conta da complexidade desse tipo de pesquisa. Retorna-se, assim, à questão epistemológica da antropologia: é possível separar a vida pessoal do ofício acadêmico, sem que uma esfera anule a outra? Aliás: é possível que uma esfera esteja inteiramente separada uma da outra?

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Laura Redfern Navarro
Laura Redfern Navarro

Written by Laura Redfern Navarro

2000. Aquariana, poeta e jornalista. Escrevo sobre livros, mulheres e escrita criativa. Sou autora de "O Corpo de Laura" (2023), projeto vencedor do ProAC 2022.

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