a palavra munição— Também guardamos pedras aqui, de Luiza Romão

Laura Redfern Navarro
5 min readOct 6, 2021

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Lançado em 2021 pela editora Nós, Também guardamos pedras aqui é o terceiro livro da poeta, slammer e atriz Luiza Romão, conhecida pelo seu trabalho na cena da poesia falada e da performance, tendo publicado, em 2014, Coquetel Motolove (2014, Selo doburro) e Sangria (2017, Selo doburro). Também guardamos pedras aqui segue um princípio de se recontar a história do Ciclo Troiano a partir de uma perspectiva de tempo expandido, em que “somos seduzidas a ouvir o comentário pertinente que a poeta faz sobre a nossa realidade atual, enquanto simultaneamente nos arrasta para um passado estranhamente reconhecido”, como escreve Adelaide Ivánova em Tanto tempo, orelha do livro.

Também guardamos pedras aqui começa com a epígrafe do livro Cassandra, de Christa Wolf, em que apresenta seu intuito ao dizer “(…) Quero permanecer testemunha, mesmo que não haja ninguém que possa solicitar o meu testemunho”. Afinal, trata-se de um livro que reconta e subverte uma história já não mais questionada, o que elenca o caráter do testemunho ao abordar a lógica do sobrevivente, aquele que se propõe a trazer justiça para si através da palavra.

Percebe-se que os poemas estão todos nomeados como os personagens do Ciclo Troiano — como Ifigênia, Agamenon, Heitor, dentre outros -, o que traz uma ideia de distanciamento ao colocar o eu-lírico como, de certo modo, a endereçar a linguagem, não de maneira epistolar, mas como resposta às suas narrativas. Isto pode ser observado já nos primeiros versos do poema ifigênia (p. 7):

“a literatura ocidental começou com uma guerra
não a neblina das grandes cidades
faz tanto tempo que talvez ouço quase
a literatura ocidental começou com um massacre
isso você respira como quem veleja
o livro permanece aberto vê
é minha vez de contar a história
(…)”

Nesses primeiros versos, o recado já está dado e imponente, num tom desafiador “a literatura ocidental começou com uma guerra”. Esse eu-lírico não pede licença, mas se desenha conciso, em alto e bom som para questionar as bases do que entendemos como literatura ocidental: é um massacre, uma guerra, é, em suma, a expressão do horror humano.

Além disso, nota-se que, quando a primeira pessoa aparece, é num discurso de luta, de refúgio e de resistência: “é a minha vez de contar a história”. Retomando novamente a epígrafe de Christa Wolf, é aqui que fica evidente a posição de se prestar testemunho ainda que não solicitado. Ele vem em toda sua potência rompendo uma estrutura que o engendra em silêncio.

Se lembrarmos a história original de Ifigênia como a mulher que fora oferecida à morte pelo próprio pai, Agamenon, veremos que essa preposição de luta não vem sozinha e não somente para questionar a literatura ocidental em si, mas ao que ela acarreta: a sua misoginia, a impunidade de seu pai, essas mulheres que são mortas, agredidas e silenciadas em prol de acordos políticos ou, ainda, que ficam numa posição acessória, mas essencial nessa construção literária. Mais para frente, o poema confirma isso nos versos:

“antes da primeira letra
antes do primeiro grifo
alguém já implorava misericórdia
estou pronta a canção
também as crianças precisam dormir”

A misoginia como estrutura que desenha o Ciclo Troiano também invade seus personagens masculinos, aqui questionados por sua estupidez, por sua rudeza, por sua agressividade. É o caso do poema diomedes (p. 13):

“há diversas formas de matar um homem
quase todas ancestrais
te ensinaram macho que ri não entra nos céus
nada que te invada os buracos
macho ranhento não governa impérios
ela estava em seu caminho ainda que deusa
desgraçada nos pés de um templo
era seu aliado bradando vingança
você goza enquanto enfia a lâmina
inventamos a pólvora mas não o desespero”

Neste poema, há uma crítica clara ao estabelecimento da masculinidade, que, apesar de soar mais pertinente à uma guerra, é justamente pela sua pertinência que se torna uma ameaça. Luiza desenha, a partir daqui, a guerra como um instrumento masculino estabelecido (“há diversas formas de matar um homem / quase todas ancestrais”) que permeia não somente a esfera do poder, mas do afeto (“desgraçada nos pés de um templo / era seu aliado bradando vingança”).

Note, neste último verso, a colocação do aliado e da vingança — a mulher como um adversário maior, este que deve ser derrotado ao descortinar a vulnerabilidade deste homem, que só conhece a agressão: (“você goza enquanto enfia a lâmina / inventamos a pólvora mas não o desespero”).

Mas o discurso de Luiza acerca da violência hegemônica que perpassa a história da literatura ocidental também traça paralelos com a contemporaneidade, especialmente, a realidade brasileira atual. Mantém-se a crítica ao masculino, mas ela passa a se dirigir para um projeto de dominação mais amplo. É o caso do poema polifemo (p. 31):

“ninguém te cegou não
não foi ulisses
aquela noite o policial não tinha identificação”

Este poema, conciso e de linguagem direta, muito próxima da oralidade, coloca a mitologia de maneira atualizada, estruturando seu tempo expandido. Aqui, o ciclope Polifemo não foi cego por Ulisses, e nem por ninguém de fato — mas pelo policial militar sem nome.

Ao realocar uma realidade contemporânea brasileira, essa que engendra a violência policial, dentro do contexto troiano, Luiza coloca a intertextualidade como subversão, mostrando o quanto essas histórias se repetem. Além disso, ela alicerça a proposta de se questionar a dominação ao trazer um discurso irônico, que supostamente invalidaria a cegueira de Polifemo — bem como o apagamento do massacre em massa dirigido pela Polícia Militar Brasileira.

Assim, Também guardamos pedras aqui revela um histórico poderoso e bastante atualizado, em que o tempo da guerra de Troia também é o tempo da violência hegemônica, masculina e colonizadora do Brasil atual, como bem alerta Adelaide Ivánova na orelha.

São textos de contra-ataque e que fazem ressalva à linguagem como uma apropriação política fortemente cunhada na intertextualidade e que, em sua essência testemunhal, se constroem ao romperem o silêncio produzido pelo trauma.

Aqui, a literatura ocidental começou com uma guerra, e é por isso mesmo que devemos revisita-la, recontá-la, refazê-la, protestá-la para reapropriar seu olhar. Em suma, Também guardamos pedras aqui é sobre se dispor de munição para o revide, sobretudo.

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Laura Redfern Navarro

2000. Aquariana, poeta e jornalista. Escrevo sobre livros, mulheres e escrita criativa. Sou autora de "O Corpo de Laura" (2023), projeto vencedor do ProAC 2022.