Laura Redfern Navarro
7 min readMay 2, 2023

Com publicação pela Editora Luna Parque, Parque das Ruínas (2018) é o sexto livro de poemas de Marília Garcia. Misturando as linguagens da poesia, do ensaio e da fotografia, Garcia traça um interessante percurso investigativo em torno dos museus Chácara do Céu e Parque das Ruínas, que, localizados lado a lado, possuem nomes praticamente paradoxais.

O livro se inicia com “uma epígrafe em forma de imagem” (p. 11), que se trata de algumas fotografias da série “topografia das lágrimas”, da artista estadunidense Rose-Lynn Fischer, que relembram mapas. A epígrafe não se limita às imagens, mas também também traz impressões da própria Marília Garcia, como se vê nos versos que encerram o texto:

“são ‘atlas temporários’
que registram um instante da vida das lágrimas
rose-lynn fischer viu que as lágrimas
têm uma linguagem própria
para cada sentimento
o trabalho está no seu site
http://rose-lynnfischer.com/tears.html

essas imagens
que parecem feitas de longe
mostram algo que está muito muito
⠀⠀⠀⠀⠀perto
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ tão perto
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ perto demais”

(p. 13)

Aqui, observa-se um manejo subversivo da linguagem pela autora, que não deixa de se ater totalmente à função da epígrafe (na primeira estrofe do trecho acima, Garcia localiza a referência das imagens), porém, também propõe uma reflexão autoral (na segunda estrofe). Deste modo, a epígrafe também pode ser lida como um texto introdutório à obra, evidenciando a preocupação cartográfica que se faz presente em toda a poesia de Parque das Ruínas.

O poema que dá título ao livro, “parque das ruínas” (p. 7), se trata de um longo texto de 50 páginas em que a autora se debruça sobre o fato paradoxal dos museus “Chácara do Céu” e “Parque das Ruínas” estarem lado a lado. Partindo desta perturbação, Garcia traça um percurso poético em que retrata o processo de elaboração desta percepção:

“1.

gostaria de começar
contando o que aconteceu
no dia em que recebi uma encomenda para escrever este texto
eu estava no rio de janeiro
e tinha ido ver uma exposição do jean-baptiste debret
num museu chamado ‘chácara do céu’
em determinado momento da exposição
eu queria tomar um café⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀mas lá não tinha café
para tomar um café
era preciso sair da ‘chácara do céu’
e ir ao museu ao lado⠀⠀ chamado ‘parque das ruínas’
então fui sentei no parque das ruínas para tomar um café
e fiquei pensando nesses dois nomes

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀*chácara do céu* ⠀⠀⠀⠀⠀⠀ e⠀⠀⠀⠀⠀⠀ *parque das ruínas*

e fiquei pensando em como fazer para passar do céu
para as ruínas e depois voltar ao céu
os dois museus ficam um ao lado do outro
- têm entre eles apenas uma passarela de ligação —
por que um tinha sido batizado
como céu ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀e o outro como ruína?”
(p. 15)

Neste trecho inicial, Garcia traz um mergulho ao movimento de seu pensamento, que começa com a contextualização dos fatos que eclodiram no questionamento entre a Chácara do Céu e o Parque das Ruínas (“eu estava no rio de janeiro / e tinha ido ver uma exposição do jean-baptiste debret / num museu chamado ‘chácara do céu’”), mostrando também o encaminhamento das ideias que foram surgindo (“e fiquei pensando em como fazer para passar do céu / para as ruínas e depois voltar ao céu / os dois museus ficam um ao lado do outro / — têm entre eles apenas uma passarela de ligação — / por que um tinha sido batizado
como céu e o outro como ruína?”).

Nota-se, ainda, que o eu-lírico também se apresenta, logo de cara, consciente da escrita do texto, de forma a não tratar-se totalmente de um movimento de fluxo. Isto se observa nos versos iniciais, “gostaria de começar” e “no dia em que recebi uma encomenda para escrever este texto”.

Desta forma, o poema já sinaliza a ciência das escolhas do texto por parte da autora, que também sabe que será lida (por tratar-se de uma encomenda). Portanto, o relato de sua elaboração do paradoxo entre a Chácara do Céu e o Parque das Ruínas se assume na posição de concretizar o ato do pensar.

Esta concretização não necessariamente passa pela anulação de um fluxo de consciência, mas de dar um corpo a ele. No trecho inicial, isto se observa pela pontuação inventiva e pelo uso de símbolos e recursos que propõem uma construção imagética e subjetiva, caso dos asteriscos, das palavras em negrito e dos espaçamentos. Assim, o poema “parque das ruínas” adquire uma disposição na página que reforça a ideia de movimento, produzindo uma experiência de leitura de um percurso ou um trajeto.

Nesse sentido, é importante pontuar que o texto — seguindo o poema da epígrafe — também traz imagens, que não aparecem de forma ilustrativa ou separadas do texto, mas como parte dele. Isto se observa na página 26:

A presença do recurso da imagem como parte do texto também integra, de fato, a construção do pensamento do eu-lírico, cuja preocupação com a linguagem também se estende à reflexão sobre a imagem, ou, ainda, a diferenciação entre a linguagem textual e a visual, quase como se buscasse, incessantemente, determinar os limites entre a palavra e o olho (“queria fazer este diário para tentar entender alguma coisa / e eu fiquei me perguntando / é possível ver este lugar?”). Logo, trata-se de um recurso que alimenta e alicerça as perguntas colocadas pelo eu-lírico a cada seção, que se debruçam não necessariamente sobre o tema inicial, mas aos detalhes e aos aspectos que chamam a atenção na composição da investigação empreendida.

Assim, o uso singular e arrojado dos recursos no texto fundamentam a homogeneidade, ou, ainda, uma voz autoral desse pensamento. Da mesma maneira, somos apresentados à complexidade desse eu-lírico a partir da forma como direciona e encadeia suas reflexões, que partem, essencialmente, de como escolhe retratar suas experiências.

Em suma, “parque das ruínas” entrelaça o sujeito (o eu-lírico) e suas experiências a partir da linguagem, apresentando, portanto, uma poética de caráter ensaístico, que combina elementos contemplativos e pessoais. Mais experimental, o texto ensaístico se funda a partir de perguntas, propondo não necessariamente sua resolução, mas um caminho autoral de fundamentação de ideia, característica que é cerne do poema.

Essa amostragem do estilo de Garcia se mantém ao longo do restante da obra. Na segunda seção, “poema no tubo de ensaio” (p. 58), os títulos dos poemas já sugerem uma proposta similar ao trazerem a ideia de “teste”. Da mesma forma, o “teste” aqui é analisado tanto sob a perspectiva do significado (em “[1,2,3 testando]” (p. 59) ), como a partir da aplicação do uso da palavra a partir da experiência do eu-lírico, caso do poema “[testando os resistores]” (p. 69):

“em 2014 publiquei um livro que era um teste
e que conversava com o livro de hocquard
tentei incorporar algumas ferramentas do ensaio
para dentro do poema
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ será que assim daria para ver
a carga teórica de um poema?
depois de publicado me perguntaram:
por que você insiste em chamar de poema?
será que o poema continua sendo poema?
será que o poema deixa de ser poema
por que se confunde com outro gênero?
será que esse teste poderia ser um ensaio?
quais os limites de cada um? quais as medidas?
ferramentas? restrições?

o teste inclui fazer perguntas
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ o teste inclui ter parâmetros

queria lembrar a já citada etimologia da palavra ensaio
e usar aquela imagem da balança:

se pego uma balança antiga para pesar um objeto
preciso de dois pratos ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀certo?
sobre um coloco um peso
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ que seria um parâmetro
e pode ser determinado por mim mesma
sobre o outro prato
coloco aquilo que será
pesado
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ testado
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ avaliado
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ provado

se quero pesar a poesia⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ quais são os parâmetros?
a relação com determinada tradição? o verso? o tom?
o que faz um poema ser um poema?
talvez seja difícil pesar porque temos um excesso
de parâmetros

o hugo friedrich diz que o montaigne
não usa a palavra ensaio
como categoria literária
e sim como⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ método”

No poema, não só se observa o tom ensaístico — de percurso — como uma reflexão em torno do próprio termo ensaio, que parte da recepção da experimentação poética de seu livro, Um teste de resistores. Aqui, há uma interessante subversão no que diz respeito aos instrumentos de análise dos gêneros utilizados por Garcia — como as balanças, emprestadas de outro tipo de mensuração e aplicadas ao contexto do texto.

Assim, a autora revisita a experiência para criar um eixo para que o pensamento discorra, aspecto que caracteriza o restante dos poemas do livro, arrematando-o como parte de seu estilo — como se vê nos versos finais: “não usa a palavra ensaio / como categoria literária / e sim como método”.

Logo, não se verifica apenas o estilo, mas sua construção e consciência por parte do eu-lírico. No poema que encerra a obra, “P.S.” (p. 83), há também uma conclusão do percurso empreendido pela autora, como se lê nos trechos:

“também gostaria de pensar que o movimento
é o motor desses dois textos um movimento
que está no olho do espectador
e na escuta de quem lê

que este livro possa ser uma espécie de site specific
e se refazer a cada leitura e contexto
podendo se jogar no chão também quando preciso”
(p. 84)

Se o poema “parque das ruínas” concebia um método estilístico, “[teste de resistores]” o sistematiza. Em “P.S.”, o que está em jogo já não é mais o ato de escrever em si, mas a experiência de leitura que ele pode proporcionar — incluindo à própria autora.

Por fim, o livro percorre a curiosidade incessante do eu-lírico acerca do texto, que vai se compondo enquanto texto.

Laura Redfern Navarro

2000. Aquariana, poeta e jornalista. Escrevo sobre livros, mulheres e escrita criativa. Sou autora de "O Corpo de Laura" (2023), projeto vencedor do ProAC 2022.