Laura Redfern Navarro
3 min readApr 26, 2023

Com publicação pela editora 100/cabeças, Lá Embaixo é um relato autobiográfico da pintora, escultora e escritora surrealista Leonora Carrington, que aborda sua experiência como interna em um hospital psiquiátrico em Santander, na Espanha, em 1941. A partir de uma escrita que se debruça tanto sobre o real quanto de elementos do fantástico, Carrington elabora um retrato da época e, sobretudo, sobre a condição feminina neste contexto. O livro tem tradução de Alexandre Barbosa de Souza.

Submetida a diversas vivências traumáticas — o contexto da Segunda Guerra Mundial; a prisão de seu parceiro, Max Ernst; a relação conturbada com a família aristocrática -, a autora desenvolve um delicado processo psíquico que a leva à internação, que também lhe traz profundos e dolorosos atravessamentos. O tom do relato, ainda que sincero, coloca a loucura como possibilidade de se contar uma história, produzindo uma interessante reflexão acerca do fazer ficcional:

“Receio que eu vá derrapar para a ficção, verdadeira, mas incompleta, por falta de alguns detalhes que hoje não consigo evocar e que talvez nos fossem esclarecedores. Hoje pela manhã, a ideia do ovo voltou à minha mente e pensei que poderia usá-lo como um cristal para olhar para Madrid”
(p. 22)

O trecho escapa uma lucidez por parte de Carrington, que atribui o caráter de ficção aos aspectos alucinatórios de sua vivência, alegando, ainda, que estes não são mentirosos, mas um escopo para tratar de um ocorrido do qual ela tem pouca memória, o que alude ao caráter traumático da experiência. Ou seja, a loucura — simbolizada pela “ideia do ovo” — é, na verdade, um confronto ao silenciamento produzido pelo ocorrido, já que, aqui, ela não insurge desorganizada, mas como um novo sistema de signos e significados para se compreender a experiência.

Deste modo, pode-se dizer que Lá Embaixo traz uma voz de testemunho, que confronta o real mas não se desloca dele de maneira integral. É a partir dos elementos mágicos colocados por Carrington, por exemplo, que o leitor consegue acessar, de forma crítica, a atmosfera do horror que permeia o contexto da Guerra, bem como a condição feminina cerceada à época.

Ao nos familiarizarmos com a autora, compreendemos o peso que ser mulher e ser artista tem sobre si. Filha de pais aristocratas, Carrington vira as costas para os pais ao optar pela errante e questionadora vida artística. Dessa forma, a família passa a tentar exercer controle sobre a autora, internando-a em um hospício a partir da fragilidade psíquica que apresenta e, principalmente, pela segunda prisão de seu parceiro, o também artista Max Ernst.

Na leitura, observa-se que a submissão e violência do manicômio não se distinguem da violência familiar, bem como compartilham aspectos da própria Guerra — em especial, a eliminação higienista de pessoas que não se adequassem a determinado perfil biotípico, moral ou comportamental — e da violência estruturante contra as mulheres. Ao final da obra, por exemplo, Carrington relata ter vivenciado chantagem sexual dentro do manicômio.

Em suma, todo o processo íntimo do internamento que Carrington aborda em Lá Embaixo é indistinguível dos acontecimentos e do contexto social da época, evidenciando a perseguição, a impotência, a rebeldia e o desejo por autonomia, cujo aspecto alucinado mais articula do que se afasta da realidade.

Laura Redfern Navarro

2000. Aquariana, poeta e jornalista. Escrevo sobre livros, mulheres e escrita criativa. Sou autora de "O Corpo de Laura" (2023), projeto vencedor do ProAC 2022.