capturar a impermanência — Dança para Cavalos, de Ana Estaregui
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Contemplado pelo Prêmio Governo de Minas Gerais em 2018, Dança para Cavalos é o terceiro livro da poeta e artista visual Ana Estaregui, tendo sido publicado pelo Círculo de Poemas — uma parceria entre as editoras Fósforo e Luna Parque. O livro traz poemas de cunho ensaístico e metalinguístico, que se voltam à noção de movimento e à escrita de um poema.
Em Dança para Cavalos, os poemas são numerados de 1 a 73 e trazem imagens do mundo natural como metáfora para o ato de se criar — ou estar em dança, ideia proposta pelo título. Isso se vê no poema que inicia o livro (p. 9):
“1.
aprender a pensar
como pensa uma flor
abrir
ninguém sabe melhor
pensar como pensa um rio
ir ir, a água sabe
ser água
lançar-se à outra ponta
todas as águas são a mesma
quando se chocam contra as pedras
pensar como pensa uma pedra
considerar
todas as substâncias
de seu corpo
insetos seiva
pétalas
pensar como pensa a terra
receber
ninguém sabe melhor criar
do que a terra a morte
frutos amarelos flores roxas
árvores como montanhas
aprender a pensar com a morte
a montanha”
Neste poema, estão em destaque três verbos — abrir, considerar e receber — em itálico, embora o poema se discorra sobre o ato de pensar — e um pensar caracterizado pela fluidez e pela sutileza, indicada pela flor e pela água. Essa fluidez é abordada a partir do viés da transformação, evocando também imagens de vida e morte e de hostilidade.
Podemos relacionar o texto 1. com a frase do químico francês Antoine-Laurent de Lavoisier (1743–1794), ““Na Natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, já que temos um eu-lírico que observa e descreve o movimento, afirmando sua existência a partir dele. Além disso, o poema parece traçar relações com a Teoria da Metapoética dos Elementos do filósofo Gaston Bachelard (1884 -1962), em especial o texto A água e os sonhos: Ensaio sobre a imaginação da matéria, que traz a impermanência enquanto qualidade da matéria ao pensarmos nas imagens da água e da criação.
A impermanência aqui, entretanto, é capturada. Logo, podemos assumir que a poesia de Estaregui adquire um tom fotográfico, embora busque capturar justamente aquilo que está se movendo, ainda que de maneira imperceptível. Isso fica evidente no poema 45. (p. 54):
“olhar o poema
como quem olha a paisagem
uma sucessão de ruas
a perder de vista
algumas se cruzam em x
encruzilhadas de ofertar espuma
ou farinha
outras serão para sempre
paralelas no tempo
não irão tocar
pé a pé o calor do outro
às vezes cada linha é
um continente inteiro
com idioma próprio e mar
e o seu modo próprio de fazer:
apenas trigo água e sal”
Neste poema, podemos perceber o teor metalinguístico que percorre a ideia de impermanência colocada pela autora ao longo do livro. Em 45., o processo de escrita de um texto é abordado partindo de sua miudeza (o ato de olhar o poema), construindo-se, a partir daí, um colossal universo sensorial, em que “às vezes cada linha é/um continente inteiro”, mas que se desemboca sempre nos mesmos produtos (o trigo, a água e o sal).
Essa pode ser uma metáfora poderosa para a escrita de um texto, em especial quando se pensa em se desvencilhar do controle do mesmo, mas se sabe que sua elaboração permanecerá sempre num mesmo eixo. Ou seja, um corpo em sua potência permanece sendo o corpo.
Pegando as ideias propostas por Bachelard, citado acima, podemos compreender que a poesia de Ana Estaregui parece emprestar muito das imagens da terra (hostilidade e repouso) e do ar (pensamento e silêncio), elementos que, apesar de contraditórios entre si, evidenciam a marca poética de uma materialidade que se molda a partir do silêncio e do movimento.
Em Dança para Cavalos, portanto, o corpo é um receptáculo, mas que sente as imagens — essas advindas do mundo externo. Isso se vê no poema que encerra o livro (p.83):
“73.
a flauta que riscou o vento
anuncia um novo início
vindo pelo mar
se o passado começou no mar
e caminhou em direção à terra
patas contra nadadeiras
o futuro é então um barco a velas
forma-força bruta de braços e gargantas
seu rosto novo tem ar
sal e guelras afiadas
essa coisa ainda sem nome
tem o metal e a luz
de um peixe abissal”
Por fim, Dança para Cavalos é uma obra que se debruça a investigar a linguagem através da dualidade entre o natural e o imaginário, partindo de uma proposição de impermanência, que perpassa a construção de imagens e do texto em si. Assim, se propõe uma tessitura metalinguística, que acaba extrapolando a linguagem, levando à uma contemplação acerca da condição do ser e estar no mundo.