Anotações de Leitura #02: Lisa Alves
I
“quando eu era criança
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀_os déjàvu me deixavam zonza_
era como se fosse
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀(uma crise de labirintite)
tudo ro da va ( ( e depois
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀.parava num mesmo ponto;
))tudo girava e a p o n t a v a
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀→ uma mesma paisagem”
(obs: o trecho transcrito acima é
do poema “XI” , do terceiro sonho
da seção “Verão”, do livro
Quando tudo for possível ou uma declaração,
da mineira⠀⠀⠀Lisa Alves⠀⠀⠀- Selo Mirada, 2022
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀//mas ele não está escrito desta maneira//)
II
enquanto comunicóloga, sempre me interessou as transações e intersecções entre as linguagens
⠀⠀⠀ou da própria Linguagem em si, como se apenas⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀se expandisse, se ramificasse,
⠀⠀⠀⠀⠀⠀quase como um ser mutante que vai ganhando cada vez mais braços ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀(tomar nota desta imagem);
ou, para o Outro, a Experiência de
//dançar//
com estes braços.
III
Quando tudo for possível tem mais dedos do que as minhas duas mãos e meus dois pés juntos, observei logo após abrir o pacote do Correios:
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀pergunto-me de cara o que é esta pedra na capa do livro,
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀por exemplo,
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀no mesmo dia, em minha caixa de e-mail
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀Lisa me mandou um arquivo em áudio,
o que para mim é algo totalmente novo porque
eu sempre separei podcasts das leituras,
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀e nunca me antenei com a moda dos audiobooks.
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀mas sou seduzida pela ideia de ser
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀um momento inaugural
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀de parar para //escutar// um livro
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀de poesia
decido ir ao parque próximo de casa
como faço toda manhã⠀⠀⠀⠀⠀⠀pernas no chão, ouvidos para fora⠀⠀
& uma camiseta azul do Sonic Youth⠀⠀⠀⠀que visto quando quero me concentrar
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀é quase verão e faz barulho lá fora
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀meu fone não é dos melhores
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀o celular trava
identifico⠀⠀⠀⠀que alguns dos ruídos do parque⠀⠀⠀⠀como o vento
ajudam a compor a atmosfera⠀⠀⠀⠀inebriante⠀⠀⠀⠀de Lisa Alves;
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀é nesse momento que escuto o poema “XI”
os déjàvu me deixavam zonza
era como se fosse
uma crise de labirintite
que ficou gravado na memória,
da maneira como foi lido⠀⠀⠀⠀a voz de Lisa⠀⠀⠀⠀ [ v e r t i g i n o s a ]
IV
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀cheguei em casa e, naturalmente, parti para a leitura
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀não-sonora do livro;
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀(ou não-totalmente sonora)
eu queria mesmo era comparar
uma Experiência à Outra ou ver
como Uma acrescentava à Outra
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀rabisquei, enchi o livro de post-its,
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀mandei uma foto de um dos textos para Fernando
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀que é muito fã da Alejandra Pizarnik,
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀que por acaso também está na obra
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀como epígrafe,
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀como Ideia
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀& como Corpo:
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀a palavra que define a Mutante de Quando tudo for possível:
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀[encontro]
V
quem é o eu-lírico de Quando tudo for possível e a quem ele se dirige?
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀pois ele fala de Espelhos⠀⠀⠀⠀e⠀⠀⠀⠀fala do amor
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀o amor entre duas mulheres
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀que, aqui, é um encontro
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀muito puro & muito sombrio
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀como quem se dirige
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀a um Fantasma
como quem consegue travar diálogos complexos
dentro de um Sonho.
VI
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ao mesmo tempo, há a Vida lá Fora;
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀um incêndio no centro do Rio, comprar tabaco na ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀Lapa,
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀a pedra (!)
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀o amor que acontece
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ao longo das estações do ano,
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀lembram ao leitor⠀⠀⠀⠀de que há /passagem do tempo;
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀mas o tempo
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀também é ⠀⠀⠀⠀(circular),
é o sonho
que torna essas coisas
⠀⠀⠀⠀e s t r a n g e i r a s
VII
a quem se dirige o eu-lírico de Lisa Alves,
⠀⠀⠀⠀essa mulher que eu ainda⠀⠀⠀⠀não consegui ouvir⠀⠀⠀⠀[a voz]?
será ela:
⠀⠀⠀⠀um afeto passado,⠀⠀⠀⠀desses que o cérebro⠀⠀⠀⠀é incapaz de _esquecer_
⠀⠀⠀⠀e que vai virando, com o tempo, ⠀⠀⠀⠀uma amálgama
de memórias, palavras não ditas, sensações;
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀essa Criatura que vai ficando
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀cada vez mais
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀mais a cara da gente
mas que não se distancia totalmente⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀da Outra:
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀“meu amor,
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀tentei enviar uma pedra para você
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀mas a memória arrasta correntes
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀no fundo da casa”,
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀diz ela no Outono
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀(p. 59)
VIII
⠀⠀⠀⠀⠀⠀o eu-lírico de Lisa Alves ⠀⠀⠀⠀& a quem ele se dirige:⠀⠀⠀⠀é O Duplo,
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀uma figura Mutante⠀⠀⠀⠀com quatro braços
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀(e um espelho):
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀“a sombra sou eu/a sombra é você”
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀(p. 62)
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀anoto em separado:
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀o texto: a memória/a carne
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀o diálogo: o amor/o luto
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀o livro: a palavra/o som
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀a pedra: o simbólico/o primitivo (ou: metáfora/arma)
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀por fim:
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀o Sonho/a Possibilidade
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀(no singular e no plural → simultâneo)
IX
“uma mulher sonha
dentro de uma caverna
uma mulher possível
dentro de uma caverna possível”
(p. 50)
REFERÊNCIAS:
ALVES, Lisa. Quando tudo for Possível: ou uma declaração. 1 ed. Recife: Mirada, 2022, 76 p. ISBN: 978–65–89460–25–1
ALVES, Lisa. Quando tudo for possível : ou uma declaração. Na voz de Lisa Alves. S. I.: Mirada , 2022. 1 audiolivro MP3 .