A Literatura como Sobrevivência — Colo Invisível, de Luciene Vignoli Müller

Laura Redfern Navarro
4 min readSep 21, 2022

Publicado pela Format Editora em 2020, Colo Invisível é o livro de estreia da escritora e editora paulistana Luciene Vignoli Müller. Com proposta autoficcional, o romance se propõe a trazer recortes da trajetória de vida da autora, voltando-se à superação de uma infância dura, marcada pelo abandono afetivo e pela vivência nas ruas.

Na dedicatória, Müller escreve “a todos que precisam de colo”. Deste modo, fica subentendido que se trata de um mero relato, mas de um livro que se abre para a identificação, para o diálogo e para o acolhimento. Assim, a autora busca oferecer, na leitura do livro, uma espécie de colo, mas não um colo literal — daí, portanto, o título: Colo Invisível.

Dividido em capítulos dedicados a eventos específicos (ou ficcionais) da vida de Müller, o romance traz uma narrativa densa, mas que se destaca pela leveza da escrita da autora, marcada pela compaixão — por si própria, pelos outros e, até mesmo, pelos agentes de seu sofrimento na infância. Apesar disso, não se trata de uma escrita que relativiza os fatos — aqui, as histórias são contadas de maneira direta e objetiva.

Em Colo Invisível, os textos trazem desde a morte da mãe de Müller e o subsequente abandono afetivo por parte do pai — que se torna alcoólatra — e da madrasta, uma prostituta; a fuga de casa como escapatória do ambiente familiar abusivo e a experiência da vida nas ruas e a adoção por parte de suas tias até movimentos posteriores na trajetória de Müller, como a entrada na vida adulta; a superação emocional, financeira e intelectual da autora e o casamento.

Assim, o livro trata de uma ampla gama de temas, como negligência, abuso infantil, bullying, miséria, orfandade, sobrevivência e coragem — todos eles orbitados, principalmente, pelo amor aos livros e à literatura, que Müller apresenta como importante elemento no enfrentamento e na superação de suas dificuldades.

Nesse sentido, em Colo Invisível, a protagonista destaca como primordial em sua narrativa o seu envolvimento com a Biblioteca Municipal Álvares de Azevedo, na Zona Norte de São Paulo, lugar que lhe trouxe acolhimento durante o tempo em que viveu nas ruas. Logo, trata-se de uma relação que se alimenta da curiosidade e da necessidade de teto, mas que também é afetiva. Isso fica evidente no relato que compõe o capítulo “ESTANTES E LITERATURA”:

“(…)
Não sei qual foi o primeiro livro que li. Só sei que meu olhar se fixava nos textos das salas de leitura.

Uma das funcionárias da biblioteca, a Ursulina, mostrava-me livrinhos infantis e revistas durante o dia. Ali descobri o que fazer para impedir a minha invisibilidade. Quanto mais eu lia, mais minha curiosidade aumentava e eu perguntava a respeito. Todas as pessoas com quem eu convivia nesse habitat percebiam que eu era sozinha, esperta e entusiasmada em descobrir, ainda que faminta. Histórias como a da Cinderela e da Branca de Neve me fizeram imaginar que eu também era uma princesa e que a tristeza era normal, mas um dia poderia acabar.

O hábito da leitura adquirido nesse cenário desenvolveu meu senso crítico e contribuiu para a minha sobrevivência, apesar de, até hoje, a leitura me confundir com tanta informação. Considero, contudo, um ganho enorme esse hábito me fazer refletir sobre a minha existência a todo tempo.

Nos anos em que vivi na biblioteca da Vila Maria, ela era dividida: a parte voltada ao público infantojuvenil tinha como patrono Pablo Neruda, e a área para adultos era uma homenagem ao poeta Álvares de Azevedo, que, apesar de ter tido uma vida muito curta, deixou uma obra de extrema importância. Tenho com carinho a biblioteca como um lugar muito gostoso, único, de onde tenho muitas lembranças boas, fortes e importantes.
(…)”
(p. 75–76)

Logo, podemos compreender que o cerne de Colo Invisível não é uma história de sobrevivência ou de mera superação, mas de uma superação que parte da literatura e da fome pelo conhecimento. No trecho, isso se observa pelo contato de Müller com as histórias infantis de Cinderela e Branca de Neve — que lhe “fizeram imaginar que eu também era uma princesa e que a tristeza era normal, mas um dia poderia acabar.”

De acordo com a Promotora de Justiça Luciana Frugiuele, que assina o prefácio do livro, “Casos como o de Luciene são inúmeros e, não fosse a monumental ação individual daquela menina, hoje ela estaria fadada a viver na marginalidade, totalmente alheia ao que denominam sociedade estruturada” (p. 13). Assim, entende-se que o “ganho enorme” que a leitura tem em refletir e pensar a própria existência a todo tempo também permite que Müller não se torne “alheia”, sendo também o que alimenta sua “monumental ação individual”

Isso fica ainda mais evidente no quinto capítulo, “Cicatrizes”, em que a autora expõe as motivações, angústias e dúvidas em torno de Colo Invisível:

“(…)

Espero que minha história leve também outras pessoas ao renascimento, pois foi isso que aconteceu: renasci. Que minha trajetória sirva de exemplo para transformar outras vidas para melhor. E tudo isso se deu comigo pela busca pelo conhecimento.

Volto ao meu passado, tão temido, a fim de identificar de onde veio essa força que me faz acreditar na mudança. Entender que, independentemente das tragédias pessoais, por mais difícil que seja, as pessoas possuem escolhas e somos responsáveis por muita coisa. E, sim, a leitura pode contribuir muito, sei que mudei meu destino por meio dela. (…)”
(p. 46)

Portanto, o relato de Müller oferece o senso crítico e o conhecimento como um enfrentamento à uma vida com poucos recursos e possibilidades materiais, reforçando sua função transformadora. Ao trazer sua história para um livro, ainda, há uma continuação desse movimento, em que Müller se coloca como possibilidade de aprendizado a fim de ser passado para frente, tocando diferentes leitores. Logo, ela oferece ao leitora o que lhe foi — e lhe é — colo.

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Laura Redfern Navarro

2000. Aquariana, poeta e jornalista. Escrevo sobre livros, mulheres e escrita criativa. Sou autora de "O Corpo de Laura" (2023), projeto vencedor do ProAC 2022.