A Voz na Fronteira: Corpo e Vertigem em O Cobre e os Figos, de Thays Horst

Laura Redfern Navarro
4 min readJun 7, 2023

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Escrito por Thays Horst e ilustrado por Cândida Matos, O Cobre e os Figos propõe uma experiência visceral e ao mesmo tempo vertiginosa.

A partir de uma escrita vertiginosa e visceral, O Cobre e os Figos acompanha, em 60 poemas, a trajetória pessoal da autora com a própria saúde mental, tendo sido diagnosticada com Transtorno de Personalidade Borderline durante o período da Pandemia, além de conviver com múltiplas personalidades.

Investigando-se enquanto existência repartida, Horst traça uma poética que perpassa a memória, o corpo e o afeto. Nos primeiros textos, já se percebe uma voz que se assume fronteiriça, onde o eu (interno) e o outro (externo) constroem um movimento de fusão:

“5.

escrevo sobre
nascimento
como
se acabasse
de existir
e não coubesse nessa explosão
re
nascer

nada me surpreende
talvez eu tenha nascido do avesso

sei que você entende
a ironia
se você cravar
como sei que quer
encontraria vestígios —
um eu que se importou
com coisas que ninguém
nunca entendeu

nasce o eu
dentro
do outro eu
mas é aquele
que sempre fui
não escondi
só demorou
não parto
sou inteira
e
finalmente
completa”
(p. 21–22)

Nas últimas estrofes do poema, o eu-lírico afirma estar dirigindo-se ao outro (“sei que você entende”), mas esse outro, o você, também é um “eu” (como no verso “um eu que se importou”), que, ao final, se vê em um só. Essa integração não é, porém, descrita sob a forma de uma confusão, mas sob o signo de um renascimento, de uma aceitação, contrapondo a angústia que abre o poema.

Sobressai também a construção expansiva da escrita de Horst, que vai conduzindo o poema a partir da composição de camadas. Dessa forma, o leitor é convidado a adentrar uma densa amálgama de palavras, sentimentos e observações que parecem mover-se ao longo do texto, produzindo uma sensação dupla de porosidade e vertigem. Isto é evidente em no trecho inicial do poema 26. (p. 87):

“eu sonhei e não voltei para a casa
deitei no chão daquela outra
enquanto isaac repetia, lar é onde seu coração está
você não poderia controlar meus olhos
virando queda d’água
não tive lar
egoísta
e injustamente
(você que sabe)”

Aqui, há a menção inicial ao sonho, a fala de um personagem nomeado, Isaac (uma referência ao cantor Isaac Gracie), e, depois, de maneira quase abrupta, a descrição dos olhos “virando queda d’água”. Por fim, uma confissão — “não tive lar / egoísta / e injustamente”.

Nesse momento, nos damos conta das imagens que povoam o mundo interno do eu-lírico, bem como a maneira como elas acontecem dentro dele. Aqui, a ruptura que se instala na construção textual parece seguir o fluxo de pensamento de Horst, evidenciando-se em intensidade e impermanência. Ao mesmo tempo, há um fio que parece ligar todas as imagens — a noção de “lar”, já evidente no primeiro verso (“eu sonhei e não voltei para a casa”) e que se repete tanto na fala de Isaac quanto na rememoração do eu-lírico do lar abusivo onde viveu.

A memória, aliás, parece ser também um dos eixos centrais da poesia de Horst, em especial em seus “buracos”. Consciente e expressiva sobre as vivências traumáticas que experienciou — disfunção e violência familiar, bullying na época do colégio — a poeta assume as falhas que elas deixaram, insurgindo nos textos do livro quase como que na forma de flashbacks ou intrusões. Ao mesmo tempo, O Cobre e os Figos também vai em busca de dar um lugar — na escrita — a essas intrusões, numa tentativa de assumir-se repartida a fim de entregar-se inteira, como no poema 5., “nasce o eu / dentro / do outro eu / mas é aquele / que sempre fui” (p. 22).

Essa movimentação dupla — vertigem e porosidade; eu e outro; as partes e o todo — portanto, também é uma pulsação pelo renascimento, esse que vem do corpo que sente, que se permite sentir e ser atravessado pela dor. Nos versos finais do poema 60., que fecha a obra, Horst expõe, de forma muito cristalina e sincera, essa voz que, do escombro, se afirma, enfim, desejante:

“preciso escrever sobre aqueles que ficaram
e perderam suas melhores pessoas
os quartos vazios
as mesas arrumadas para um
a falta de travesseiro ao lado
o corte cirúrgico nos jantares
o afogamento em caixões de mogno
eu trocaria qualquer dia imundo da
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀[minha infância
para voltar naquele hospital
eu queria te levar pra casa
só mais uma vez”
(p. 210)

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Laura Redfern Navarro

2000. Aquariana, poeta e jornalista. Escrevo sobre livros, mulheres e escrita criativa. Sou autora de "O Corpo de Laura" (2023), projeto vencedor do ProAC 2022.