a poética dos paradoxos — vícios de imanência, de Paulo Ferraz

Laura Redfern Navarro
4 min readApr 27, 2022

Contemplado pelo 1o Edital de Publicação de Livros na Cidade de São Paulo pela Secretaria Municipal de Cultura, Vícios de imanência é o quarto livro do professor e poeta mato-grossense Paulo Ferraz, publicado pelo Selo Sebastião Grifo. Com orelha assinada por Tarso de Melo, o livro se funda numa ideia de poética, que perpassa por temas bélicos, fantásticos e teóricos, a partir de uma perspectiva desmontada, que se empresta da semiótica e da linguística.

Vicios de imanência é dividido em três seções — para não esquecer, jeune fille e o andar de baixo. Na primeira, encontramos textos que brincam com a forma, misturando prosa e poema, que revelam-se, porém, atravessados pela linguagem da dominação — ou o Estado. São referências que resgatam processos históricos como a 2a Guerra Mundial e a Ditadura Militar Brasileira para explorarem a ideia de que a construção da língua é, também, a assimilação da violência. Isto se vê nítido no poema que abre o livro, Em verdade temos medo:

“Em verdade temos medo

para Tarso de Melo

haja o que houver, contenha-se
⠀⠀⠀⠀⠀⠀podem te denunciar à OKHRANA
não responda, não conteste
⠀⠀⠀⠀⠀⠀ a GESTAPO dará a última palavra
coma com os olhos fixos no prato
⠀⠀⠀⠀⠀⠀ alguém do seu lado pode ser da KGB
se atenha às banalidades da vida
⠀⠀⠀⠀⠀⠀ a CIA pouco se importa com isso
evite contato com amigos de amigos
⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ninguém conhece os membros da SAVAK
não leia jornais no transporte público
⠀⠀⠀⠀⠀⠀ os da STASI também voltam para casa nos trens
não cite autores que ninguém os leu
⠀⠀⠀⠀⠀⠀a PIDE riscará seus nomes e suas obras
seja comedido e econômico nos gestos
⠀⠀⠀⠀⠀⠀ pode haver câmeras do MOSSAD
omita seus pensamentos, ela é sua mãe”

Neste poema, a ideia da hipervigilância sobressai — assim, é necessário controlar a linguagem a fim de evitar riscos ou punições, essas que viriam desde órgãos como a GESTAPO ou a KGB até a figura da mãe. Curioso notar essas equiparações, tendo-se que a mãe não detém o mesmo poder político dos órgãos citados, sendo uma instância de regulação moral, que atravessaria o pensamento da mesma maneira.

Logo, podemos entender que “Em verdade temos medo” ressalta o controle da elaboração a fim de mostrar o perigo enquanto limitadora da autonomia e liberdade do pensar. Ferraz, porém, quebra a construção inicial desse perigo, representado por agentes políticos, ao colocar também a instância cotidiana, das relações familiares, como parte dessa assimilação do perigo.

O cotidiano — e o subjetivo — na construção dessa linguagem regulada fica mais evidente na segunda seção do livro, jeune fille. Com textos que resgatam a atmosfera do sonho, a seção se propõe também à elaborar as limitações da língua, desta vez trazendo suas impossibilidades. Em contraponto com para não esquecer, jeune fille mostra não a necessidade de controle sobre a linguagem, mas em como ela própria não satisfaz essa necessidade, sempre escapando alguma coisa, de algum modo. Isso se vê no poema Alba (p. 52):

“Não a resistência
do vento, mas sim a
densidade da água
que envolve, que agarra o
corpo, inoculando o
veneno da espera a-

té te transformar pele em
pensamento, menos,
em vozes ouvidas,
outras jamais ditas;
o que se vê tem do
sonho quase nada, a-

penas o desejo
de tê-la outra vez à
distância dos dedos,
ela estaria próxi-
ma, não fosse a grita
do mundo e do corpo,
não fosse esse oriente,
não fosse essa músi-
ca que vem das árvo-
res, não fosse ouvir do
colchão, do lençol, do
travesseiro:
volta ao

real, ao invés do leito
te reclama a lida.”

Em livre tradução do francês, jeune fille significa “nova filha”, ou “recém-nascida”. Emprestando o conceito de separação entre pais e filhos, podemos entender a seção a partir de dois sentimentos: o do arrebatamento e o do vazio. O arrebatamento de ver a filha territorializar o mundo e existir feito uma força; e o vazio de não conseguir transpor tal arrebatamento por completo.

A terceira seção do livro, o andar de baixo, sintetiza o paradoxo do controle trazido nas duas primeiras seções, buscando, assim, elaborar um conceito para a criação, uma espécie de poética. São poemas que brincam com as margens entre ficção e realidade, abarcando conceitos teóricos, intertexualidades e até trazendo o próprio autor, Paulo Ferraz, enquanto personagem:

“Etimologias

TEORIA: do gr. Théos, portanto, aquilo que é próprio dos deuses e, por conseguinte, pouco afeito à matéria. Um dos coletivos de anjos.

SOFRER: do lat. pop. sufferere. corruptela de sulfur, o enxofre, elemento apreciado pelo diabo. Variação metonímica: sofrer é o mesmo que ser atormentado por seus demônios.

RECORDAR: do lat. recordo, é o mesmo que trazer de volta ao coração, sentir de novo. Possível origem figurada, trazer atado ao peito um camafeu.

PROTAGONISTA: do gr. protagonistes, na tragédia é aquele que primeiro padece.

PAULO: do lat. paulus, de pequena estatura ou que produz com lentidão. Diz-se, também, daquele que aparenta qualquer estado de fragilidade física ou emocional Por derivação, aquele que é submisso ou fraco”

(p. 65)

Por fim, podemos dizer que Vícios de imanência é um livro que se funda nos paradoxos, sendo seu projeto a elaboração de um projeto. Tal como a proposta metodológica de tese-antitese-síntese, embora sejamos sempre lembrados da impossibilidade do texto ou do poeta. No poema Etimologias, isso fica evidente ao colocar o sujeito — Paulo — como “aquele que é submisso ou fraco”.

Logo, a poética de Paulo Ferraz não se mostra pela potência da escrita, ainda que o texto seja, em si, potente. E esta, talvez, seja a grande a sacada: a subversão da situação no texto exige a submissão do poeta à realidade.

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Laura Redfern Navarro

2000. Aquariana, poeta e jornalista. Escrevo sobre livros, mulheres e escrita criativa. Sou autora de "O Corpo de Laura" (2023), projeto vencedor do ProAC 2022.