a linguagem como encontro de afluentes — Nascente, de Heleine Fernandes

Laura Redfern Navarro
6 min readNov 10, 2021

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Lançado em 2021, Nascente é a estreia na poesia de Heleine Fernandes, poeta, professora e pesquisadora carioca. O livro integra o segundo bloco da coleção a galope, parceria entre as editoras Garupa Edições e Kza1, apresentando a tradicional capa contendo título e índice, tamanho reduzido e costura lateral, feita artesanalmente em máquina de costura.

Nascente se propõe a traçar um renascimento desse eu-lírico através da consciência do corpo negro, atravessado pela ancestralidade, pelo colonialismo e pela favela. Heleine constrói, assim, um percurso; esse que se faz por meio tanto de poemas quanto de fotografias. Pensando o título do livro, é possível lê-lo como um rio, esse que desagua no eu-lírico, nascente de si mesmo quando se entende Poeta.

Nascente se inicia com a epígrafe Láaróye, que, em dialeto yorubá, indica uma saudação à Exu, entidade ligada à comunicação. Nas religiões de matriz africana, Exu é o primeiro orixá a ser saudado, como um pedido de licença. Heleine, assim, pede licença à linguagem, ou, melhor à sua morada — a nascente.

Isso pode ser observado já no poema cabeça perfumada (p. 8):

“bebe do meu corpo
córrego
riacho morno.

dá de comer
enquanto bebe
aos peixes que reluzem
no fundo

e fazem emergir
quando saciados
ondas de perfume
banhos de cheiro.”

No poema, observa-se um lirismo potente que cria o Corpo a partir da água , essa que flui visando renascer a poeta (“e fazem emergir / quando saciados /ondas de perfume / banhos de cheiro”), traçando o movimento do mergulho interno em que a linguagem se libera, produzindo vida e, portanto, o poema.

Essa produção da vida, entretanto, não vem apenas de uma vontade individual, mas de uma comunhão, como se vê no poema em busca do jardim de minhas mães (p. 15):

“1.

leio em alice walker
a narrativa dessas histórias que saíam dos
lábios de minha mãe
tão naturalmente quanto sua respiração…
e penso nas narrativas que escapam
dos lábios
como hálito vital
fumaça de tabaco cheiroso
sopro que vem do meio do corpo
minha mãe demorou muito tempo
para aprender
a deixá-las sair assim
como quem transpira
em um dia de domingo
ou como quem respira fundo
e dá uma gargalhada desarmada
quando eu era criança ela comprava LPs coloridos
com narrativas de histórias infantis
e também de coleções de livros
de contos de fadas
mas ela mesma
não contava suas histórias”

Essa primeira parte do poema já nos evoca a linguagem presente na figura da mãe, essa que é costurada em fôlego ( “sopro que vem do meio do corpo”) e leveza. Porém, nos defrontamos com o exato oposto desta imagem — a não-linguagem, a contenção — que a mãe carrega ao não poder, por muito tempo, contar a sua própria narrativa.

Essa realidade da não-linguagem, ou do aprisionamento à linguagem colonial, esta que aqui ganha o contorno dos livros infantis e dos contos de fadas, é explicada pela filósofa Grada Kilomba como a definição do sujeito versus. o objeto, sendo o último aquele que não pode contar a sua história ativamente, apenas por meio do sujeito, hegemônico. Afinal, a identificação de Heleine para com a mãe não vem através desses dispositivos, mas, sim, da escritora negra estadunidense Alice Walker, como fica claro nos primeiros versos do poema.

A história da mãe de fato passa a ser revelada a partir da segunda estrofe:

“lembro de uma história sua
que ouvi quando era adolescente
sobre sua primeira festa de aniversário
aos quinze anos
organizada por ela mesma
com o dinheiro de seu próprio salário.
quando o pai viu a festa
destruiu tudo
e a cobriu de vergonha.

acho que minha mãe
se protegia de suas histórias
enquanto mantinha chiando a TV ligada
enquanto exigia que tudo estivesse muito limpo
enquanto reclamava do meu desejo de viver
ou da melancolia de meu pai.

enquanto isso
suas histórias continuavam
borbulhando em seu útero
sem imagem
e sem palavra
em silêncio.

elas vibram ainda hoje
na pele dos filhos
os que nasceram e os que não nasceram
saberei eu
traduzir esses silêncios
herdados
em canto cheiroso
em hálito de sereia?”

(p. 16)

Nessas estrofes, nota-se que o silêncio da mãe não se trata de contenção, mas de uma imposição externa (o pai que destrói a festa) que ela passa a reproduzir para com o eu-lírico (“enquanto reclamava do meu desejo de viver”). Esse distanciamento, porém, não produz frieza, mas empatia, uma pulsão à linguagem, ou melhor, ao resgate dessa linguagem a qual a mãe não teve direito, que se torna a motivação do poema (“saberei eu / traduzir esses silêncios / herdados / em canto cheiroso / em hálito de sereia?”).

Vale ressaltar, ainda, que a foto que antecede o poema retoma esse cenário da festa de quinze anos, elencando com ainda mais força a necessidade narrativa a partir do documento.

Essa pulsão à linguagem — e, assim, de tornar-se sujeito — fica mais evidente na segunda parte do poema (p.17):

“2.

minha mãe nasceu em jardim
no cariri
os pés da chapada do araripe
a moleira molhada
nas águas do rio são francisco
meu avô
depois ela
e minha avó
vieram de lá

(repetida diáspora)

plantar a família aqui
na roça pequena
que era o rio de janeiro
e já não é mais

jardim é um município do cariri
região metropolitana do ceará
é o canteiro de
terra onde brota
a literatura de cimento do meu avô
a literatura de letra insegura de minha avó
a literatura de minha mãe
que não escreve:
a literatura que herdei
e continuo.”

A segunda parte do poema, assim, traz uma evocação à ancestralidade, uma reconstrução da história de sua família — que, entende-se, são dissidentes e, assim, objeto, não tendo a possibilidade de contar sua história, essa que é também travessia, à qual Heleine remete à Diáspora africana. Há também referências ao espaço geográfico, notadamente a Favela da Rocinha, onde nasceu Heleine, nos versos “plantar a família aqui / na roça pequena /que era o rio de janeiro / e já não é mais”, além de Jardim, que dá título ao poema, sendo o município de origem de sua mãe, trazendo à sua retomada uma noção de lugar, o que dá corporeidade ao poema e não o limita a uma pessoalidade, essa que é entrecortada também no título, destacando a pluralidade dessa comunhão com as próprias raízes.

A última estrofe de a em busca do jardim de minhas mães parece já amadurecer a elaboração desse sujeito, colocando a literatura como seu norte e herança, constituindo uma afronta ao silêncio, como se vê ao final do poema “a literatura de minha mãe / que não escreve: / a literatura que herdei / e continuo.”

A elaboração do sujeito em Nascente não se restringe ao lírico ou à história de sua família, mas de uma denúncia clara: ao racismo, à milícia e à violência policial dentro das favelas no Rio de Janeiro. É o caso do poema “operação colonial” (p. 21):

“acordar com o som dos helicópteros
espanta-pássaros
difícil sentir-se em casa
no próprio corpo
quando sobrevoa
o caveirão voador
o que quer a operação?
os meus rins?

o meu útero?
o meu coração?

estranha cirurgia
o estado quer amputar-me
da casa
que levo dentro
ele quer entrar
sem ser convidado
revirar tudo
e expropriar-se de mim.

onde é aqui
quando a bala canta?

diáspora

e quando ela silencia?

diáspora
gravada nos meus genes.

os líquidos do corpo tremem como na antiga viagem.

os órgãos
de inteligência do Estado
estudam perfurar
telhados de escola pública
e fronhas perfumadas
com o teu cheiro
os cães farejadores.

mas ninguém pode invadir
a casa que levo dentro
contra isso mantenho-me viva
em vida
contra isso
muitas bocas
assopramos o fogo que não morre.”

O poema, com tom embativo, faz claramente alusão à invasão policial dentro das favelas ligando-os ao projeto colonial em que se funda o Brasil, onde o oprimido deixa de ser corpo (“o estado quer amputar-me”) e, assim, de ser sujeito para servir à dominação do opressor. Porém, Heleine não se deixa ser “perfurada” pelo Estado — e a memória entra aqui como instrumento de reconhecimento da própria pele em risco (“os líquidos do corpo tremem como na antiga viagem.”) que ganha um ar de imponência, de vida, de permanência sobretudo, na última estrofe.

Por fim, pode-se dizer que Nascente é um livro sobre se nascer sujeito num mundo em que o eu-lírico reconhece-se como objeto. Assim, traça-se um percurso — um rio, como se propõe — a fim de construir essa consciência — que vem como linguagem. Mas o que desagua não é uma linguagem individual, mas coletiva, permanente, um encontro de afluentes.

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Laura Redfern Navarro

2000. Aquariana, poeta e jornalista. Escrevo sobre livros, mulheres e escrita criativa. Sou autora de "O Corpo de Laura" (2023), projeto vencedor do ProAC 2022.